
O primeiro verme que roeu o seu cadáver foi o único digno de homenagem…
Depois de duas semanas mencionando meu livro favorito (até o momento) nos periódicos, acho que vale a pena expor aqui minhas impressões sobre o magnum opus de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas.
O primeiro amor
Quando estava no Ensino Médio, lembro que minha dificuldade com “Os sofrimentos do jovem Werther” me deu uma ânsia para que passássemos ao Realismo. E quando chegamos lá, gastou-se tão pouco tempo no assunto, que fiquei decepcionado. Para remediar, resolvi ir atrás eu mesmo dos livros do período.
Foi assim que descobri “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, inicialmente propagandeado pela sinceridade do protagonista: como ele está falando do além, ele não tinha porquê ter medo de retaliações dos personagens. Mas o que descobri foi uma coletânea de sarcasmos, humor e personagens envolventes, de modo que eu fiquei preso e marcado pela obra…

Depois de anos sem encontrar nenhuma que causasse o mesmo impacto, fiquei me perguntando: “Será que ela é tudo isso que a minha memória tem guardado?”
Uma visão mais madura
Então, comecei a releitura. E me peguei por diversas noites tendo que pausá-la por uns minutos; eu estampava um sorriso de orelha a orelha no rosto, meu entusiasmo com cada trecho me obrigava a divagar sobre eles. Além da alegria pela beleza do livro, fui revisando minhas anotações e elas, em algum momento, convergiram, por mais que falassem de assuntos diferentes. Isso me alegrou, era um sinal de que estava entendendo alguma chave de leitura da obra.
Essa chave ficou mais clara lá pelo meio/fim do livro, mas já estava adormecida nos primeiros capítulos: a narração de Pandora sobre a História das Guerras e do sofrimento como frutos do egoísmo; a projeção familiar da vocação de Brás Cubas mas que, por não ter uma base sólida, culmina no cultivo a uma vida de aparências; e o contato com Quincas Borba, que lhe inspira uma mania de grandeza.
E enquanto tomava nota do relacionamento de Brás e Marcela (que prefigura o romance dele e de Virgília), percebi como essas ideias se traduziam nas ações do protagonista: quem visse de fora, julgaria que se tratava de um casal apaixonado e estável; mas não enxergaria as dívidas que ele arranjou para a família em troca das joias dadas à amada; não veria o vai e vem a que ambos se submetiam, de hora declararem juras de amor, hora desprezarem o outro; e não veria o desleixo de Brás com a moça, fixado na ideia de ser lembrado na história. A partir desse momento, passei a analisar com mais afinco a personalidade do personagem.
A vida adulta
O restante do romance foca no relacionamento extraconjugal de Brás e Virgília — que se casou com um deputado, após Brás Cubas a descartá-la como oferta de casamento pelo pai — e todos os eventos ao redor. Esses eventos me marcaram, pois tornaram tangível uma coisa que aprendi nas lições de escrita: essas subtramas não são apenas acidentes, elas contribuem de algum modo para a história principal. Dava para ver que a vida dos personagens secundários progredia: o deputado Lobo Neves ascendeu politicamente; a irmã de Brás, Sabina, se casou e tentou aconselhar o irmão, até lhe oferecendo uma esposa… Mas o próprio Brás, embora tenha momentos em que demonstre um bom caráter, agarra-se aos próprios sentimentos e vive de acordo com eles, mantendo uma ideia fixa: ter uma vida feliz com Virgília.
Então, quando rumina sobre sua vida do além, só as descreve por negativas: não foi ministro, não se casou, não teve filhos… Não creio que Machado de Assis tenha pensado numa única lição de moral quando escreveu esse livro. Mas, para mim, essa chave de leitura foi fundamental para analisar como a postura do personagem contribuiu para o seu fim. Ele teve toda oportunidade de casar-se com boas moças, até mesmo com a Virgília; teve a oportunidade de ser um político de respeito. No entanto, escolheu ignorá-las e seguir de acordo com a sua vontade, ou ouvindo conselhos de um amigo igualmente miserável e com a mesma mania de grandeza… E, ao final, não sobrou nada, seu legado ficou abandonado às traças.
Um veredito
Memórias póstumas de Brás Cubas provou, nessa segunda leitura, que realmente se trata de uma grande obra da literatura brasileira. A linguagem de Machado é sarcástica e cômica, mas também é seca e sincera; utiliza diversas referências da literatura universal e da Bíblia, que certamente enriquecem o texto para quem é familiarizado com elas.
Contudo, qualquer um, independente da sua bagagem cultural, pode pegar esse romance e se divertir com ele. E acredito que há outras chaves de leitura, porém a que expus aqui já parece um bom começo para lê-la com um olhar atento; para que, observando as atitudes de Brás Cubas, ajamos diferente, e não cheguemos ao túmulo apenas com negativas… Mas que deixemos um legado às pessoas que amamos!
Pax et bonum, fratelli!