
Amarás o Senhor, teu Deus, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as suas forças; amarás o teu próximo como a ti mesmo; nisso consiste toda a Lei e os Profetas.
Há uma semana, eu e uns amigos debatemos o conto Sonho de um Homem Ridículo, do Dostoiévski, em que um homem prestes a se suicidar tem um sonho único, no qual conhece criaturas semelhantes aos elfos de Senhor dos Anéis: homens não tocados pelo pecado original, em harmonia com a natureza. A partir da discussão e do conto em si, fiquei com a cabeça pinicando para falar sobre o amor como algo mais profundo do que um simples bem-querer. Então, ao lembrar-me do meu filme favorito, Flipped — traduzido como O Primeiro Amor, no Brasil —, vi a oportunidade perfeita para falar desse assunto, trazendo uma perspectiva prática.
Eros

Falarei sobre o amor romântico primeiro; afinal, é a história principal do filme: dois adolescentes vizinhos dos anos 60, de famílias completamente diferentes, que sofrem com um problema de timing — quando um se apaixona, o outro começa a desprezá-lo. A princípio, uma história meio boba, mas cheia de elementos incríveis. No caso da paixão adolescente, tanto o desprezo como a paixonite iniciais são vistos de acordo com as aparências, sobre a visão superficial que cada protagonista tem do outro. No caso de Juli, por anos ela viu um rapaz atlético, educado e bonito, que era laçado por meninas superficiais; para Bryce, Juli era apenas uma vizinha irritante e que vivia numa casa bagunçada…
Porém, à medida que a história avança, ambos descobrem o caráter um do outro: Juli é uma menina sensível, destemida e incompreendida, numa casa saudável, apenas exteriormente feia; Bryce, ao contrário, é um rapaz mimado, com uma estrutura familiar bagunçada (disfarçada de sucesso) e covarde. A partir dessa percepção, é que a história entra no verdadeiro Eros: joga fora as expectativas irreais e luta pela compreensão do outro, além da lapidação interior em busca de ser digno dele.
Philia

O amor de amizade é igualmente bem retratado nesse filme, tanto na versão virtuosa como na viciosa. Bryce possui um melhor amigo que faz coisas normais de amizades masculinas adolescentes: caçoa do amigo, fala sedentamente sobre garotas… Mas, quando chega um momento crucial na história, quando Bryce mudou sua opinião sobre a vizinha, ele mostra as caras… Estou tentando não contar a história toda, mas é difícil quando é seu filme favorito, você se empolga…
Em paralelo, a versão virtuosa é algo lindo, pois é uma amizade de uma adolescente com um viúvo, e ambos contribuem para a felicidade alheia, sem esperar nada em troca: o Sr. Duncan ensina à menina como embelezar a fachada, enquanto Juli o faz relembrar das boas memórias com a esposa. Para além de assuntos cotidianos, ambos se permitem entrar em discussões mais profundas, de modo que a barreira da idade se mostra até agradável: a voz da experiência revive a juventude, enquanto a juventude aprecia os conhecimentos da experiência, de modo que ambos cooperam para os projetos de vida um do outro, assim como bons amigos devem fazer.
Storge

Já falei um pouco sobre a dinâmica das famílias, não pretendo contar muito além para que vocês vejam o filme e percebam em primeira mão. Porém, a figura dos pais de ambas as famílias ilustra magistralmente a diferença de como esse amor pode ser potencializado ou corrompido.
O pai de Bryce, sendo um homem que vive o sonho americano, mas sem controle dos filhos, desdenhoso do pai e insensível às dores do vizinho, é a encarnação do homem que apenas finge ter uma estabilidade. O pai de Juli, por sua vez, foge dos estereótipos de pai de família: é um artista e, junto com a esposa, provê o básico para a família, que mora numa casa alugada.
Porém, o diferencial dos pais de Juli é que sua autoridade é silenciosa e sensível: apoiam o sonho dos filhos em serem músicos, mas os ensinam a ter responsabilidade, de modo que eles vão atrás da educação universitária; ensina a filha a enxergar o mundo com mais maturidade e discute eventuais problemas com sinceridade. Mesmo que passem por apertos, a família deve permanecer coesa e amorosa, e não ser apenas uma emenda de pessoas com o mesmo sangue e sobrenome.
Ágape

O amor ágape, ou divino, não é propriamente abordado do filme, dado que não há um contexto religioso. Porém, ele pode ser inferido a partir de um arco fundamental da história: o tio de Juli, Daniel, que sofre de uma deficiência mental.
Nessa parte da história, se vê a noção mais crucial do amor, que, no filme, é menos evidente nos outros amores: o sacrifício. Cuidar de um portador de deficiência, o qual é, de certo modo, incapaz de compreender sua condição ou como ela afeta os demais, exige uma renúncia. “Por que eu faço isso? Não deveria deixá-lo aos cuidados de alguém mais capacitado?” seriam perguntas plausíveis de alguém na situação do Sr. Baker; mas somente ele poderia amar Daniel como irmão. E essa renúncia é feita por um amor superior, que não vê nenhum benefício para si, apenas o bem-estar do outro. Nisso, o bem-querer pode ser intercambiável com o termo amor, pois se busca algo fora de si; mais ainda, está disposto a perder algo (tempo com os filhos e a esposa, dinheiro) para amá-lo. É um amor que, se o compreendêssemos em sua totalidade, nos constrangeria; o que, para o cristão, é uma realidade de fé.
Veredito
Assim como a teoria dos quatro temperamentos, os quatro amores não são mutuamente exclusivos; por exemplo, como a Natália Sulman (um dos meus perfis favoritos) aponta, a relação matrimonial carrega elementos de todos os amores. Além disso, embora eu tenha destacado isso apenas no Ágape, todos os amores, quando levados à sua finalidade máxima, envolvem um desprendimento e sacrifício de si, em prol do bem do amado. E, assim como o homem ridículo concluiu, o amor ao próximo pode ser justamente o que falta para vivermos como anjos.
Desde que descobri esse filme na TV a cabo, ele ganhou um espaço no meu coração, e só mais recentemente comecei a entender o porquê. Ele não é só uma história boba de amor adolescente; é uma visão real de como o amor permeia o ser humano, sem precisar de eventos extraordinários como a guerra ou a morte; não, ele explora tudo isso em uma história cotidiana e linda, amplificada pela ambientação nostálgica de uma época em que não vivi, posso apenas imaginar. Deem uma chance ao filme, vale a pena!
Pax et bonum, fratelli!