Anna Kariênina: uma novela de verdade

Sem a Graça, o casamento seria impossível, e por isso Deus o elevou a sacramento.

E o que acontece quando se põe obstáculos à Graça?

Nas férias do ano passado, viajei para casa sem um único livro que não fosse meditativo. Minha esperança era a de desafogar alguns acumulados no Kindle. Porém, assim que cheguei, minha mãe me mostrou o bonito exemplar de Anna Kariênina que ela havia comprado, da Companhia das Letras, e imediatamente me senti compelido a lê-lo.

Uma premissa com spoiler

Vários clássicos, involuntariamente, chegam ao nosso repertório cultural e, sem querer, ficamos sabendo de algum elemento chave do enredo: os ciúmes de Bentinho em Dom Casmurro, o suicídio de Romeu e Julieta, etc. Com Anna Kariênina, não foi diferente: antes de começar a leitura, eu já tinha conhecimento da premissa da história: o adultério de Anna Kariênina.

Se eu fosse seguir apenas esse conceito, seria plausível um pequeno espanto com as oitocentas páginas da obra: o que há pra se explorar tão extensivamente sobre traição? Mal sabia eu que a história de Anna é apenas um elemento na construção do microcosmo do livro; tanto é que ele começa com outro problema: a situação da família de Dária Aleksándrovna, uma mãe de família cujo marido (Stiepan Arcaditch) a traíra com a governanta. E é a partir desse conflito e desses personagens que a trama começa a se desdobrar: a tristeza de Kitty, irmã de Dária, em ter rejeitado o pedido de casamento de um rapaz íntegro; a jornada de Konstantin Liévin — o camponês tímido que fez o pedido a Kitty — em administrar sua propriedade; a situação de Anna, irmã de Stiepan, apaixonada pelo Conde Vrónski e desdenhosa do marido Aléksei, entre outros.

Extensas e riquíssimas páginas

Diante dessa variedade de dramas e histórias, começa a se formar uma justificativa para o tamanho do livro: há muito a se contar! Ainda assim, a quantidade de páginas assusta. No meu caso, desde a primeira das oito partes, ficou claro porque o livro é tão extenso. Usarei como exemplo a corrida de cavalos do Conde Vrónski. Até o final da corrida — quando Anna perde a compostura diante do marido, em vista da derrota do amante —, não há nenhum detalhe que esteja ligado à narrativa principal; parece até uma pausa na história para descansarmos a cabeça. Assim que encarei as subtramas com essas palavras, ficou tudo esclarecido: esses trechos “sem importância” são semelhantes ao sono; não são pausas entre dois períodos de tempo, mas um momento fundamental de calmaria antes da tempestade. Assim como uma noite mal dormida atrapalhará o rendimento no trabalho, um trecho em que não há propriamente adultério — mas um escândalo (inconsciente) da amante — afetará o marido quando a trama principal continuar.

Além disso, esses trechos são tão bem narrados (a descrição emocionante da corrida de Vrónski é o mais próximo que se consegue transmitir sem estar propriamente à beira da pista) que esse desvio da história traz um refresco a cabeça e dá um tempero especial para a história como um todo.

Outra coisa que, para mim, justifica as oitocentas páginas, é a completude do universo criado pelo livro; é possível, somente com Anna Kariênina, ver o contexto dos mujiques na Rússia e suas relações com o patrão, os trâmites do congresso, as opiniões religiosas e comportamentos morais da sociedade russa da época… Há uma riqueza não apenas na linguagem e na construção dos personagens, mas há um retrato de tudo que se pode imaginar da Rússia do século XIX. Nesse aspecto, me lembrou algo que me disseram sobre Três homens em conflito, quando comentei que os trechos da Guerra Civil Americana arrastavam a história do tesouro: não há como negar que, para uma época sem documentários, esses momentos retratam magistralmente parte da história dos Estados Unidos. Do mesmo modo, pode parecer que esses trechos são desconexos e, para alguns, até tediosos, dependendo do assunto; mas eles trazem uma riqueza única ao texto, e com certeza contribuem não só para uma percepção do momento em que a nação passava, mas como isso afetava diretamente o humor e as escolhas dos personagens. Para nossas vidas hoje, que são inevitavelmente afetadas pela política, pelas relações trabalhistas e outras realidades amplamente estudadas pela sociologia, é imprescindível reconhecer a importância que o nosso tempo influencia em nossas ações, para decidirmos o que é bom e o que se deve combater.

Um último detalhe que coroa a riqueza do texto é a capacidade de síntese de Tolstói; algumas frases ditas pelos personagens tem a potência de um canhão, mas o tamanho de uma formiga. Seguem alguns exemplos para ilustrar:

  • “Talvez porque eu me regozijo com o que tenho e não me atormento com o que não tenho.” — garanto que o Ven. Fulton Sheen ou o Pe. Paulo Ricardo seriam capazes de elaborar uma palestra/homilia inteira sobre a virtude da pobreza partindo apenas dessa frase;
  • “Preciso de atividade física, senão o meu caráter vai deteriorar-se, com toda a certeza.” — um jeito inovador e refrescante de dizer Mens sana in corpore sano;
  • “Eu me sinto tolhido e reprimido porque não me admitem como ama de leite num orfanato — disse o velho príncipe.” — qualquer semelhança com certos movimentos é mera coincidência.

O que aprender sobre o casamento?

Lembro-me que, depois de ler Romeu e Julieta com amigos, foi pauta da discussão a possibilidade de Shakespeare criticar o casamento por paixão; as pessoas facilmente seriam dominadas por ela, excluindo a possibilidade de algo equilibrado. Em Anna Kariênina, há personagens que fazem esse mesmo questionamento, criticando tanto o casamento arranjado quanto as paixonites. Se seguíssemos a lógica do enredo, poderíamos concluir que Tolstói opta pela posição do elogio à paixão; afinal, Konstantín e Kitty — inspirados na história do autor e de sua esposa — tiveram um final feliz, enquanto todas as outras famílias, de casamentos arranjados, caíram em miséria. Porém, uma análise mais a fundo esclarece melhor a forma como o tópico é abordado: a paixão de Liévin e a noção imatura de Kitty são, inicialmente, causa de sofrimento para ambos; toda a história de Anna aconteceu justamente por ela se apaixonar por alguém que não o marido; e, por fim, o casamento de Dária enfraquece justamente após o marido a trair por achar a esposa sem graça, enquanto a governanta lhe parecia mais agradável.

Mais do que uma tese sobre os tipos de casamento, a frase emblemática de abertura (“Todas as famílias felizes se parecem, as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”) parece ser o aspecto real a se olhar durante toda a leitura. O que a torna uma potente fonte de meditação e tomada de consciência: como estou conduzindo a da minha vida e da minha família? Estou contribuindo para algo saudável e edificante, não importa quantos problemas surjam, ou estou seguindo meu apetite imediato, possivelmente comprometendo nosso futuro?

Conclusão

Nem tudo são flores, pois a leitura que iniciou no final de Julho de 2024 só encerrou em Maio de 2025… A partir da Quinta Parte, quando grande parte dos acontecimentos esperados já haviam ocorrido, não senti mais tanta empolgação pelo livro, o que tornou as últimas 300 páginas bem mais exaustivas… A qualidade não decaiu, só digo isso como um alerta: prepare-se, pois mesmo que leias 30 páginas por dia, ainda vão faltar umas centenas. Como meu amigo Robalo disse (sobre Crime e Castigo), é como devorar um elefante…

Por todos os assuntos “desconexos” e pelo fato da história principal ser sobre o amor conjugal, facilmente poderia ser dito que Anna Kariênina é como uma novela, o que não deixa de ser verdade. Mas uma novela profunda e capaz de te conectar com a história de um país inteiro, além de trazer a reflexão sobre as cruzes do casamento e como (não) enfrentá-las, a torna algo muito além do que se costuma ver na Rede Globo.

Pax et bonum, fratelli!

About the author

Sou engenheiro e escritor. Faço artigos compartilhando meu processo criativo, reflexões pessoais e escrevo resenhas sobre os livros e filmes que vejo.

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